terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Retratos de Goiânia.

Segunda feira levantei cedo, decidida há ter uma semana produtiva. Para começar o dia resolvi caminhar... Essa atividade, pelo menos para mim, sempre foi uma forma de organizar as idéias, planejar a semana e praticar um pouco de meditação ativa. Técnica que muitos esotéricos recriminam, mas, que para mim funciona. Pelo menos por alguns minutos. Sempre caminho na Alameda das Rosas, parque encravado no coração de Goiânia, onde fica também o zoológico municipal e um lago de mesmo nome da alameda. Fiz alguns exercícios de alongamento e Yôga e só então, dei os primeiros passos. Respirando profundamente e agradecendo a Deus por um novo dia.
Comecei a primeira volta em sentido horário e naquele amanhecer, as calçadas estavam tomadas pelos atletas matinais, idosos, donas de casa, atletas, obesos e toda a fauna que compõe os caminhantes de Goiânia. Rapidamente percebi que não conseguiria meditar, pois, minha atenção se desviava para os personagens que cruzavam meu caminho. Não pude me furtar ao meu esporte predileto: Observar pessoas. Tipos variados cruzavam por mim, alguns mais peculiares, deixando seus retratos gravados na minha retina.
Observei uma senhora que subia um trecho mais íngreme, amparando,o que eu deduzi, fosse a filha deficiente, que caminhava com dificuldade. A cabeça da menina, muito grande, em relação ao resto do corpo, pendia de forma descoordenada. Carinhosamente, de tempos em tempos, parava, enxugava o suor da mocinha e retomavam o exercício. Admirei-me com o carinho e atenção que eu percebia nos gestos daquela senhora. Muitas vezes já observara esse cuidado em outras mães de deficientes. Alguns seres humanos, quando aparecem as dificuldades, conseguem transcender e deixar seu lado meigo e delicado aflorar. Aquela mãe havia cruzado essa ponte e na verdade, quem se superava na caminhada era ela, que transbordava puro amor e cuidado. Lembrei-me de minhas filhas e pela segunda vez naquele dia agradeci a Deus, a dádiva de ter filhas perfeitas.
Continuei meu caminho e avistei uma moça muito bonita caminhando em sentido oposto. Passou por mim, falando sozinha, com semblante carregado. Sua expressão denotava raiva, revolta, a boca se retorcia levemente para baixo. Com certeza, se alguém lhe contasse que ela falava sozinha enquanto caminhava , gesticulando levemente, provavelmente ela não acreditaria. Assim como eu, ela planejava seu dia e as ações que deveria executar. Porém, não tinha o autocontrole para dominar seu corpo e viver em plenitude o dia que despontava. A festa que os passarinhos faziam nas copas, o verde intenso das árvores nessa época chuvosa. O delicioso cheirinho de terra que nos acolhia. Pensei comigo mesmo. Se ela relaxasse um pouco, descontraísse a expressão, poderia até vir a ser uma pessoa mais bela.
Observei que ali, naquele parque, desfilava pela minha frente toda a humanidade. Com sua carga de dor, de beleza e de desespero. Lembrei-me de um livro que havia lido tempos atrás, que se intitulava “o corpo fala”. Decidi observar a postura e a expressão dos transeuntes para ver o que me diziam. E assim, nesse jogo, descontraidamente, segui adiante.Cruzei com um senhor gordinho, com uma barriga enorme. Dizem que do tipo mais propício para ataques cardíacos. Dura e redonda como uma melancia. Caminhava com certa dificuldade e arfava um pouco. Sua testa coberta de suor e a camiseta encharcada denotavam que ele fazia um grande esforço. Aquela barriguinha ali (não é por nada não...), é típica de alguns goianos quarentões. A grande produção de carnes do nosso estado é propícia para fomentar o hábito do churrasco. Regado a muita cerveja, é claro. Com o desenrolar dos anos o resultado era a chamada barriguinha de chope. Que para perder, realmente era difícil...
Parei em um quiosque próximo a entrada do zôo, pedi um coco geladinho e tirei alguns minutos para relaxar. Minha atenção foi desviada para um casal de idosos sentados a mesa ao lado. Evidentemente estavam iniciando um namoro, olhos nos olhos, todo o gestual dos apaixonados. De aparência simples, roupas modestas, gente do povo... Estavam se conhecendo. O velhinho contava sua vida, que tinha aposentado no ano anterior e que ficara muito satisfeito por receber a ligação da velhinha. Ela sorria satisfeita e dizia que havia pensado muito e resolvido ligar. Tinham com certeza quase setenta anos. Pensei comigo: “é. O amor não tem idade”. Intrigada, meditei que esse impulso para o amor provavelmente não acabava nunca. Eles se levantaram e foram andando, alegres e lépidos em direção ás bilheterias do zoológico e eu resolvi retomar minha caminhada.
Correndo em minha direção, vinha uma moça, que parecia saída de um comercial de produtos esportivos. Roupas de ginásticas caríssimas, ipod conectado, corpo esculpido com muita ginástica, vitaminas e nos dias de hoje até podia arriscar... algumas lipos, quem sabe? O lado bom disso tudo é que realmente ela transpirava saúde. Seu semblante era sereno e agradável e parecia que realmente ela estava desfrutando a jornada. Dizem que o exercício físico libera endorfinas e olhando para seu rosto, não ficava nenhuma dúvida, era o próprio retrato da mulher bem resolvida.
Quando já estava quase finalizando minha caminhada, diminui o passo, observando um pequeno grupinho que caminhava à minha frente, eram três mulheres, com grandes camisetas e moletons antigos, levemente gordinhas, evidentemente todas estavam fora de forma. Uma delas contava para as outras sobre uma festa que havia comparecido no final de semana. Uma briga que houvera e alguns desaforos que escutara (Não é que eu goste de escutar as conversas alheias, mas, caminhávamos no mesmo ritmo e era realmente inevitável que eu ouvisse pelo menos alguns trechos)... Todas davam seus palpites e eu quase dei o meu...Enquanto ultrapassava o grupinho, uma delas aconselhou indignada: _Porquê você não chamou a polícia? “Você é boa demais Maria...” Olhei para trás e li os dizeres na camiseta da Maria. “100% mãe.” Notei que ali acontecia uma espécie de terapia coletiva, iam desfiando seus problemas, se aconselhando mutuamente. Evidentemente eram donas de casa, com suas mazelas comuns a grande parte das mulheres. Família, filhos, maridos, etc..
Segui para casa estranhamente revigorada após essas andanças. De alguma forma, me senti reconfortada por esses personagens urbanos... Era a vida em sua plenitude pulsando pela cidade. A cidade como um organismo, despertava, expondo todos os seus atores, nesse grande palco da vida. E eu estava lá. Compondo também esse cenário. Então, pela terceira vez naquele dia agradeci a Deus. Agora pela minha vida.

Eliane Brito
É advogada e escritora.