segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

POR UM MUNDO SEM DROGAS!

Já havia se passado quase dez anos. Mas, parecia que foi ontem. Olhando a cena que se repetia, lembrei-me vividamente da primeira vez que havia ingressado em uma delegacia, na condição de advogada, para liberar um preso. Agora estava ali novamente. Com a mais cruel das missões. Comecei a recordar, eram aproximadamente duas horas da manhã e a mãe, desesperada, havia me ligado na madrugada solicitando meu auxílio. O filho de dezoito anos, que eu havia visto crescer, fora preso por porte de drogas. Era amiga da família o que tornava minha tarefa mais dura. Identifiquei-me e entrei na sala do delegado. A cena me chocou um pouco. X, de cabeça baixa, arfante, algemado, com o rosto muito vermelho, estava sentado no centro da sala. Sem camisa, descalço, com alguns vergões pelo rosto, ladeado por dois PMs, que muito nervosos, falavam alto e relatavam o ocorrido ao delegado.
Pedi calma, aproximei-me de X e o tranqüilizei. Levantei sua cabeça para que me olhasse, mas, ele desviou a vista. Era o retrato da humilhação. Olhando algumas marcas em seu rosto perguntei? _Você apanhou? Nesse momento todos olharam em silêncio para mim. Quem respondeu foi um policial: _Ele reagiu doutora! Agrediu-nos com socos e pontapés. Eu respondi apenas. _A lei não o autoriza a espancar ninguém.
Ele havia sido preso na saída da escola, aproximadamente dez e meia da noite. A polícia o prendera e mais dois colegas, depois de uma investigação prolongada que demonstrara o envolvimento com drogas. Conversei com X que me garantiu que não traficava, só era usuário. Quem traficava era um sujeito denominado “gordinho”. Na hora da prisão portava apenas um cigarro de maconha e nada mais.
Sentei-me e comecei a conversar com o delegado no sentido de impedir que fosse lavrado o flagrante. Naquela época, o usuário era apenado severamente. Não era como hoje, onde só se participam de alguns cursos educativos. Resolvi tentar sensibilizar o delegado. Comecei a rememorar a vida de X. Falei do carinho com que fora criado, estudara nas melhores escolas, crescera com todo amor e cuidados. Era um rapaz bem preparado. Estudara inglês, informática. Sua família tinha uma reputação ilibada, sendo considerada referência na sociedade, com um sobrenome bastante conhecido.
Enquanto relatava, tive de me conter para não chorar. Lembrei-me de X, com dez anos de idade, andando de bicicleta, correndo alegre e faceiro como toda criança. Lembrei-me de suas doenças infantis. Da preocupação e do cuidado dos pais, que o cercavam de todos os carinhos. Lembrei-me de minha amiga, sua mãe, preparando os pratos prediletos que ele gostava. Comecei a sentir uma grande revolta e indignação. Simplesmente não entendia como tanto amor fora se transformar naquela cena que eu via ali na delegacia.
Argumentei das consequências de uma ação penal na história do jovem. Que ele levaria essa marca indelével por toda a vida. O delegado estava irredutível. Disse que estava de campana a mais de duas semanas e lamentou que na hora que efetuaram a prisão ele portava uma pequena quantidade. Como último recurso, pedi que deixasse a mãe do rapaz ingressar na sala para vê-lo. Ela entrou com o rosto transtornado pelas lágrimas. Aproximou-se e abraçou X, que virou o rosto e falou apenas. _Saí daqui mãe! Eu não quero que a senhora me veja assim... Ela apenas lamuriou, como uma mãe faz sobre um filho morto: _ Oh! meu filho! O que aconteceu com você? Por que você fez isso? X, ouvindo isso, limpou uma lágrima que teimou em cair e de queixo erguido desafiante exclamou novamente: Mãe fica lá fora!
Após essa cena, o delegado perguntou se a família concordava em colocar o rapaz em uma clínica de recuperação de drogados. Eu firmei o compromisso de pessoalmente interná-lo em uma casa de saúde em São Paulo. Como as provas realmente eram insuficientes, finalmente, aproximadamente quatros horas da manhã, consegui sair da delegacia, levando X a tiracolo. A mãe se aproximou de mim e com um longo abraço me agradeceu. Aquele abraço foi o mais triste que já recebi na minha vida. É o abraço que nenhuma mãe deve dar. De alivio, mas também de dor, humilhação e desespero.
Hoje graças ao apoio da família e dos amigos, X está totalmente recuperado. Casado, pai de dois meninos, vivendo uma vida normal. Mas, muitos não têm esse final feliz... Muitos ficam reféns das drogas a vida toda. Caídos em um poço profundo onde nada pode salvá-los. Muitas vezes, nem todo amor do mundo pode impedir que a pessoas se autodestrua. O barato das drogas deixa cicatrizes profundas. Todos sofrem. O viciado, os pais, os familiares e o advogado. Não se pode ignorar o trauma e a impotência provocados pela droga. Precisamos lutar contra esse mal com as armas que temos: Informação, educação e amor, muito amor... Esse sim, o construtor de todos os recomeços.


ELIANE BRITO, é escritora, advogada, autora do livro: “Do pequi ao sushi- Crônicas de viagens.” eliane@rodovalho.com.br. Publicado no Jornal DM do dia 15/02/2009.

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