quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A Liberdade de um tênis velho.

Paguei pelo tênis novo, já antevendo o prazer que sentiria, no dia seguinte, em minha corrida matinal. Sai da loja com um sorriso no rosto e a certeza de uma boa compra. Na manhã seguinte, ao nascer do dia, desembarco em um parque da cidade. Alongamento, ajustes finais, começo um leve trote para aquecer. Êpa, ando cerca de cem metros e já percebo uma incômoda dor no pé esquerdo. O tênis estava me machucando, constato. Paro, tiro do pé, ajeito o cadarço, calço novamente. Tudo em vão, após uma curta distância, desisto. Todos os meus planos de vida saudável frustrados. Praguejo mentalmente e decido dar por encerrada minha ginástica matutina.

Procuro uma sombra agradável sob uma bela árvore, com a visão do lago a se descortinar a minha frente e resolvo meditar um pouquinho antes de ir embora. Quando estava conseguindo aquietar meus pensamentos, sou despertada por grandes formigas negras, decididamente subindo pelo meu corpo. Calma. Respiro profundamente e retiro os insetos da roupa, tomando cuidado para não matá-las. Afinal, elas tinham mais direito de estar ali do que eu. Ou não, como diria Caetano.

Já me livrando do mau-humor que lentamente tentava me dominar, sigo mancando em direção a um quiosque, onde um simpático senhor vende cocos verdes. Encosto-me no balcão e peço um coco gelado. Ele, gentilmente informa que não tinha. Só coco natural. Aceito. Pelo jeito o dia não respeitaria nada que eu planejasse para ele. A melhor saída era me adaptar. Apesar de ser sete horas da manhã, o sol já estava á pino. Bebo devagarzinho, observando as arvores totalmente verdes após as chuvaradas da primavera. Exuberantes com suas frutas e flores. Era incrível como após um inverno tão seco, a natureza reagisse tão rapidamente com as primeiras águas.

O vendedor então puxou conversa comigo. Perguntou se eu conhecia “jatobá”, mostrando-me os frutos, de casca marrom e dura, que estavam sob o balcão. Afirmei que sim. Fora criada às margens do Rio Araguaia, onde eram abundantes essas árvores. Ele então, apontou para a grande árvore de jatobá, de onde há pouco, colhera os frutos. Perguntei-lhe se ele me daria um fruto de presente, pois, “havia bem uns vinte anos que eu não comia desse alimento”. Ele concordou prontamente e abriu o mesmo para mim. Havia me esquecido do gosto acre e forte, de como era pegajoso e grudava nos dentes. Não era de todo mal.

O envelhecido vendedor então me falou que “mulher tinha que comer pouco jatobá, bem pouquinho...” Acrescentou que deixava as mulheres “muito fortes”. Falou isso, com um sorriso malicioso no rosto, estufando o peito. Não entendi. Então perguntei: “Forte, como? Com vontade de namorar?” Ele riu a valer, mostrando a boca banguela. “Sim, era isso mesmo...” Concluiu.

Nesse ponto se estabeleceu certa camaradagem entre nós. Ele saiu detrás do balcão e começou a contar a vida, como só as pessoas simples e solitárias sabem fazer. Era maranhense, trabalhara em tudo nessa vida, até no garimpo de serra pelada. Fora pescador em São Luiz, casara-se duas vezes e quase se casara quatro. Ele então explicou que quando estava para se casar, das outras duas vezes, Deus lhe dera entendimento e ele desistira da empreitada. Com a segunda e última mulher, já tinha vinte e sete anos de casado e dois filhos. Com a primeira, ficara um tempo junto, pouco tempo... Perdera a paciência, principalmente com o sogro, “que era um pinguço de quinta categoria” e a abandonara, juntamente com os três filhos. Tomou uma “ojeriza” tão grande da criatura que nunca mais voltara nem ao menos para ver os meninos. Contou tudo isso sorrindo, sem um pingo de remorso.

Aí então concluiu: “A coisa que eu mais gosto é liberdade”! Se eu fosse mais jovem, tivesse mais saúde, sumia no mundo, ia conhecer tudo... Eu, que sou uma viajante natural, tive meus instintos aguçados. Perguntei: “O Senhor tem vontade de viajar para o estrangeiro”? Não ficaria com medo? Ele afirmou que era isso mesmo. E, concluiu: “melhor coisa que existe é correr mundo".

Fiquei ali pensativa alguns minutos, olhando para os meus tênis novos, sentindo o latejar do pé. É, liberdade é uma coisa boa, um tesouro. Mas, pra ser boa de verdade mesmo, precisa se ajustar perfeitamente ao corpo da gente, ser confortável, assumindo a nossa forma. Algo assim, como um tênis velho.



ELIANE BRITO, é escritora, advogada, conselheira seccional, presidente da Comissão de Cultura da OAB-GO. eliane@rodovalho.com.br


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