segunda-feira, 14 de setembro de 2009

BOA AMIGA...


Quando me afasto em meu carro dourado, quase posso ouvir o suspiro dúplice, de alívio e de tristeza que ela exala. Pilotando meus sapatos de bico fino, ostentando algumas pérolas e a indefectível bolsa vermelha, retirei-me, não sem antes deixar flanando pelos ares o aroma do perfume francês.
Minha loucura é tudo aquilo que me impele para longe. Quando cheguei para essa visita, pressenti que ela não queria minha presença ali, quando me retirei, podia sentir em seus lábios o pedido para que ficasse. Porém, não poderia me estender mais, minha missão estava completa. Conseguira retirá-la duma redoma de dor e trazê-la de volta à mediocridade do dia-a-dia, melhor dizendo, aos afazeres banais que compõem nossas vidas. Entregara uma mensagem louvando a existência e suas transformações. Louvando o fútil, que incorpora noventa por cento de nosso dia-a-dia. Com minha presença lhe lembrara de negócios, leis, política, trivialidades e um pouquinho de sexologia. Assunto que não pode faltar em nenhuma conversa que se preze. Assim, a catapultara de seu mundo de deveres e correção. Senti que ela se fortalecia com minha presença. Nossos antagonismos em estilos de vida a levavam a louvar cada vez mais suas escolhas, a dignidade de todos os seus caminhos.
Eu me desdobrava no papel de anti-heroína. Ação que desempenho a perfeição. Minhas atitudes fazendo o contrabalanço perfeito com sua simplicidade espartana. Seu mundo se restringia aos livros, aos grandes debates, aos filósofos e suas contradições. Os dedos manicurados voando pelos ares, em contraponto com suas mãos, desnudas e sem grandes cuidados. Tenho certeza de que minha figura a lembrara de todas as coisas das quais ela não necessita: jóias, perfumes, festas, massagens, maquiagens, viagens. Todo o universo que envolve a vida de uma mulher mimada e cheia de manias. A visita se desenvolvia e ela se sentia cada vez melhor.
Observava-me, sem saber que entre luz e sombras, também existem coisas bonitinhas que eu defendo com unhas e dentes, como dignidade, justiça, caráter, etc. Mas essas eu não queria lhe mostrar. Não lhe interessavam naquele momento. Pensando nessa nossa amizade improvável, porém, tão bonita debaixo dos raios do sol, fiquei ali lhe admirando... A impetuosidade versus a correção. O orgulho versus a humildade. Parecia estranho, mas se complementavam e tornavam esse mundo estranhamente perfeito. E às vezes esses sentimentos se transmutavam de lugar. Oscilavam entre mim e ela. Principalmente o orgulho. Esse o norte de suas ações e também das minhas. Afinal, todos defendem suas preferências. Isso é inerente ao ser humano. Minha boa amiga, tão bonita e ao mesmo tempo tão frágil em sua simplicidade.
Sentindo o peito apertado percebo que é hora de partir. Os sinais são claros. Seus olhos já estão brilhantes, sua fala rápida, suas idéias efervescentes. Já destruíra todas as suas defesas. O vulgar tem esse poder. À custa de muito esforço abrira algumas fissuras em sua armadura, afastando a depressão e permitindo que o sol entrasse em sua vida. Você, minha boa amiga, até cogita surpresa e espantada sobre a hipótese de ter algo em comum comigo. Isso reinventa sua rotina e traz um pouco de magia. Assim, me afasto, não sem antes dar um leve tropeção, o salto se enganchara em uma pedra. Esse o único ponto destoante de uma visita perfeita.

ELIANE BRITO, é escritora, cronista, advogada. eliane@rodovalho.com.br

Um comentário:

Daniel Tonet - Goiânia / GO disse...

Muito bonito! Minha amiga escritora está cada vez mais talentosa. Parabéns.